quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Dia 158: Ultrapassar as fases difíceis da vida - idades de passagem

Para sobreviver aos invernos agrestes dos países ditos temperados, muitos animais hibernam e as árvores entram em dormência. Em determinadas alturas da vida, também nós, humanos, deveríamos poder, em consciência, recolhermo-nos interiormente.

Nos momentos cruciais da nossa existência, em particular nas idades de passagem: da infância à adolescência, da juventude à maturidade, da meia-idade à velhice[1], em que temos de fazer opções fundamentais e quando efetuamos balanços do que fomos e somos e do que queremos ou não queremos ser, deixamos de conseguir viver a vida de todos os dias. Muitas vezes em estado de grande perturbação e em sofrimento, necessitamos de percorrer um caminho interior em direção ao centro de nós próprios, ao nosso eu, e para o fazermos precisamos de ajuda, seja através da meditação, da terapia, da introspeção, seja do que for para cada um.

Quando há mais de 25 anos comecei a estudar o papel e o significado da narração oral na evolução do homo sapiens (sim, isso mesmo: o papel dos contos e das histórias na História da humanidade!), aprendi que também a literatura, oral e escrita, nos propõe um caminho avisado para ultrapassarmos as fases difíceis das nossas vidas: aquelas em que questionamos seriamente a vida que vivemos e a pomos em causa.

Todos (re)conhecemos, ao longo da vida, a experiência da leitura ou da escuta, esta em geral sobretudo na infância, de contos como fuga para uma experiência interior. Contudo, este aparente alheamento da realidade acaba por também ser socialmente eficaz: porque enriquece e regenera[2].


Mitos e arquétipos da mulher selvagem.
Ou seja, os textos literários escritos ou contados ajudam-nos a viver simbólica e subliminarmente os verdadeiros momentos difíceis da vida, contribuindo também para vivermos melhor com os outros. Isto porque, sob os aspetos fantásticos e inverosímeis com que os textos literários nos encantam, subjaz a realidade bem concreta de, ao longo de toda a nossa vida, termos necessariamente de crescer e de evoluir interiormente: de — sofrendo metamorfoses quase sempre dolorosas — ultrapassar as etapas fundamentais da nossa existência, as diferentes idades da vida[3].

O que de fundamental os grandes contos da humanidade nos ensinam é que esses momentos constituem provas perigosas que não podem ser superadas sem se passar por um difícil e exigente processo iniciático — de iniciação à vida[4] — e é este ensinamento que constitui a razão de ser dos contos e das verdadeiras histórias e é nele que reside o seu poder e o seu fascínio[5].

Na sua estrutura mais simplificada, os contos falam-nos de um tempo e de um espaço indefinidos: «Era uma vez, num sítio distante...» onde todos os seres viviam em harmonia, num universo sem História e sem histórias para contar. Tal como as nossas vidas de todos os dias. A história só começa de facto quando o equilíbrio desse tempo-espaço é brutalmente quebrado por forças assombrosas, muitas vezes malévolas.

Depois de várias tentativas sempre falhadas de combater o grande MAL, é então convocado para acabar com o terror e o tormento, o mais humilde e pequeno de todos: nós, eu (mas eu quem? eu? EU?!). É verdade, somos mesmo nós, esse ser anódino e insignificante, quem vai ter de decidir arriscar a vida. O que acabará por fazer, depois de ultrapassar hesitações e medos.

«Heróia»? Quem? Eu?
É então que os contos nos ensinam que, para não ficarmos feridos de morte, nem magoarmos quem nos quer bem, teremos de ter muito cuidado. Teremos de nos proteger, de encontrar aliados imprevistos, de cumprir normas e regras específicas. O que o pequeno ser agora a caminho de se tornar um herói, até pode, à partida, nem sequer conseguir entender.

Isolarmo-nos da vida quotidiana é a primeira condição
Assim, em primeiro lugar, temos de viver uma preparação. Essa preparação consiste na escolha de um lugar sagrado, para aí nos isolarmos, nos purificarmos e nos distanciarmos da vida que até então levávamos[6]. Só nesta solidão, que é em si um desafio, poderemos concentrar-nos no muito que nos será pedido e em quanto a nossa vida terá de mudar.

Sermos fortes, corajosos, persistentes, disciplinados é a segunda.
A esta preparação, segue-se um tempo de procura, de busca e de indagação para o qual é necessário cumprir alguns rituais e é sempre exigida uma provação física ou psicológica. É o único modo de nos fortaleceremos para a mais difícil e dura das três fases, a do confronto com o terror, o grande MAL!


Vencer o combate contra o terror, o mal e a morte é o que nos é exigido.
O confronto, não tenhamos dúvidas, é de vida ou de morte. Coloca-nos frente a frente com a morte, permitindo-nos conhecer a própria substância de que é feita a vida, a que a torna única e insubstituível. Vencido este terrível combate, dele regressamos mais fortes e mais sábios[7], podendo agora estabelecer relações agora mais enriquecedoras e intensas com os outros.

A história termina com a reposição da harmonia renovada e a vida volta a pouco e pouco a tomar conta de nós... até ao próximo «Era uma vez...»


«Era uma vez...» e não era uma vez.
Para nos reconhecermos no sentido deste discurso, recomendo vivamente quatro obras clássicas que recontam e interpretam contos matriciais da literatura universal:

Para adultos: Mulheres que correm com os lobos de Clarissa Pinkola Estés e O quarto dos horrores de Angela Carter. 


Para as histórias contadas às crianças: Psicanálise dos contos de fadas de Bruno Bettelheim. 


Para jovens: La vie, une aventure dont tu es le héros de Florence Bacchetta.

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Referências:

[1] RUFAT PERELLO, Hélène [1996] - Sobre las iniciaciones recuperadas. In I Congresso Nacional del libro infantil y juvenil. [Madrid] : Asociación Española de Amigos del Libro Infantil e y Juvenil.

[2] EQUIPO PEONZA [1995] - Abcdario de la animación a la lectura. [Madrid]: Asociación Española de Amigos del Libro Infantil e y Juvenil, p. 196.

[3] Cf. RUFAT PERELLÓ.

[4] Cf. RUFAT PERELLÓ.

[5] Cf. RUFAT PERELLÓ.

[6] Cf. RUFAT PERELLÓ.

[7] Cf. RUFAT PERELLÓ.





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