segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Dia 8: A SUPER-EU e a euzinha

Como já aqui referi, fui educada para ser uma super-pessoa: super-mulher, super-mãe, super-profissional, super-amiga, super-dona-de-casa... Não podia descansar, nem ter um tempo para mim, sem me sentir culpada. Aliás, por mais Super-eu que eu tentasse ser, nunca me sentia bem. Estava permanentemente em esforço e, mesmo assim, jamais conseguia ser super-tudo!

Esta SUPER-EU era, contudo, uma mulher extraordinária: sempre entusiasta, sempre prestável, sempre disponível, sempre surpreendente. Todos gostavam imenso dela, dos mesmo amigos
(?) aos colegas, aos vagamente conhecidos. E todos eram muitíssimos e cresciam proporcionalmente à dádiva da Super-eu, constante e interminável. A pouco e pouco, a Super-eu começou a sentir um cansaço quotidiano que nem a dormir passava e a depressão latente em que a Super-eu vivia agravou-se a um tal ponto que adoeci gravemente.


A SUPER-EU, com as devidas desculpas à Barbie.
Algum tempo depois de iniciar a minha psicoterapia, comecei a chorar durante a noite e, quando consegui sonhar o meu choro noturno, conheci a Euzinha. A Euzinha era um ser muito pequeno, disforme e doente, que gritava, esperneava e chorava sem nunca parar. Não conseguia sequer aproximar-me dela, tal era a raiva que tinha dentro de si. E, no entanto, pedia-me ajuda num choro desesperado, convulsivo, interminável.

Com a terapia, percebi então que a SUPER-EU e a Euzinha eram as duas eu própria: a Super-eu só tinha aliás uma existência tão ativa e dedicada à custa do sofrimento de uma Euzinha cada vez mais monstruosa e em sofrimento. A pouco e pouco a
Super-eu começou a perceber que, inconscientemente, media o seu próprio valor com base nas manifestações de carinho, de gratidão e de interesse de todos quantos a rodeavam. E fazia-o à custa de se ignorar sistematicamente ao ponto de se anular a si mesma e de ignorar tudo o que desejava: e fora aí que nascera Euzinha!



A Euzinha.
O meu trabalho interior consistiu então em abraçar as duas, de modo a tornar-me numa pessoa inteira. Tive de romper com muuuuuuuuuuuitas rotinas e reconstruir-me todos os dias um pouco mais. Muito lentamente porque este é um processo meio consciente, meio intuitivo e também até certo ponto onírico. Sabemos o que devemos fazer, mas o que temos de fazer é dificílimo porque é o que antes era impossível, impensável e, claro, indizível. Foi desta constatação que nasceu a minha lista de NÃOS e a minha recusa determinada em fazer o que sempre até então me obrigara. Devagar e a medo, com avanços e retrocessos, comecei a descobrir outros caminhos, outras atitudes, a aprender a respirar e, inacreditavelmente, a rir.

Sonhos, Akira Kurosava
Até que uma noite, sonhei que estava muito doente e que tinha sido internada numa camarata de hospital. Deitada na minha cama e cheia de febre, percebia a custo o que se passava à minha volta, mas no meio de uma espécie de neblina sensorial conseguia ouvir o choro de uma criança que se encontrava deitada na cama em frente da minha. 

Na realidade não era bem uma criança, era uma menina em miniatura, tão frágil como uma planta demasiado esguia, e tão doente que era impossível que resistisse muito tempo à desumanidade daquele lugar. Quando percebi que ali jamais a iriam salvar de uma morte certa, decidi fugir com ela. Vesti-me a custo, embrulhei-a numa manta e, mesmo sentindo-me sem forças e aterrorizada, consegui sair do hospital sem que ninguém desse conta de nada.

Dali fui ao encontro das minhas irmãs e dos meus sobrinhos: todos nos rodearam com muito amor e carinho e todos queriam ver a menina e brincar com ela. Eu tinha medo que ela não se conseguisse manter de pé e que eles, sem querer, a magoassem. Expliquei-lhes que tínhamos de ter muito cuidado porque ela estava muito doente. Contudo, como percebi que também ela queria brincar, coloquei-a delicadamente no chão e, para meu enorme espanto, ela era agora uma criança de cerca de 5 anos de idade que caminhava hesitante mas decididamente. Via-se bem que estava feliz! Tanto que sorria para mim como eu para ela e ambas começámos a andar em direção às brincadeiras das outras crianças.


A interpretação psicoterapeutica deste sonho permitiu-me perceber que eu já não me encontrava cindida em duas e que o processo de cura se tinha iniciado. No sonho, eu era eu, mas já não a Super-eu. Esta estava aliás frágil e doente, mas determinada em salvar-me, tanto à Super-eu como à Euzinha. A Super-eu tinha revelado a sua força na fragilidade mais absoluta, do mesmo modo que  a Euzinha deixara de ser monstruosa e enraivecida. No final do sonho, sorriamo-nos mutuamente e caminhávamos em direção a... viver!


Samsara: morte e renascimento da consciência.

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